A letra da canção de Chico Buarque de Hollanda, Amando sobre os jornais, composta em 1979 para o musical O Rei de Ramos e belissimamente interpretada por Maria Bethânia em seu álbum Mel, pode ter um uma interpretação paralela à que ela foi submetida originalmente.
Isso porque, na minha concepção, a letra faz uma alusão brilhante da vivência e da rotina amorosa de pessoas em situação de rua, vulgo moradores de rua, ou mesmo mendigos.
Vejamos agora uma análise dos versos e você vai entender a minha interpretação sobre a letra.
1ª estrofe
A letra começa com o primeiro verso fazendo uma ambientação:
Amando noites afora
Fazendo a cama sobre os jornais
De noite à noite, os moradores de rua preparam suas camas sobre jornal, um item chave que retrata a noite-a-noite dessas pessoas. Pelo menos antigamente, quando era muito mais fácil encontrar um velho jornal impresso em qualquer padaria ou escritório.
Um pouco jogados fora
Um pouco sábios demais
Um pouco jogados fora, pessoas que são esquecidas por uma parcela da sociedade que passa pelas praças e lugares públicos sem sequer notar (nem sequer querer notar) a presença desses moradores ali, como abandonados. Um pouco sábios demais, essa elegante antítese que une pouco e demais para dizer que essas pessoas também podem ser ilustres inteligentes e sábias.
Esparramados no mundo
Molhamos o mundo com delícias
Pessoas em situação de rua estão por toda a parte do mundo. E por serem seres humanos, eles também amam e espalham esse amor e tesão, molhando o mundo com suas delícias pessoais. Mais à frente virão outros versos que selam essa ideia de que os moradores de rua também amam, e que também fazem sexo.
As nossas peles retintas de notícias
Este verso revisita a ideia do ícone jornal como a imagética do morador de rua. Deitados e amando sobre os jornais, essas pessoas se levantam depois com as peles manchadas da tinta do jornal e as notícias “colam-se” como se tivessem sido carimbadas na pele.
2ª estrofe
Amando noites a fio
Tramando coisas sobre os jornais
Fazendo entornar um rio
E arder os canaviais
Das páginas flageladas
Sorrimos, mãos dadas e inocentes
Noite após noite, as tramas, os dramas e as histórias das pessoas de rua se assemelham à de qualquer outra pessoa, independente de sua situação. Mais uma vez o jornal aparece como a ambientação dessas tramas. Fazendo entornar um rio e arder os canaviais volta à ideia de que essas pessoas de rua também se entregam ao sexo e, depois disso, as páginas flageladas, as páginas surradas, amassadas, o vestígio de noites de prazer, que terminam com sorrisos, mãos dadas e sentimentos inocentes.
Lavamos os nossos sexos nas enchentes
Este é o verso que consagra a ideia do sexo entre as pessoas de rua. Não existe nada mais humano, nada mais animal e nada mais vivo do que o ato do sexo. As enchentes causadas pelas chuvas lavam e tiram os vestígios dessas noites de amor e prazer.
3ª estrofe
Amando noites a fundo
Tendo jornais como cobertor
É interessante como Chico Buarque, letrista da mais alta qualidade na música e na dramaturgia brasileira, diversifica o início de cada estrofe: noites a fora, na primeira, noites a fio, na segunda, e noites a fundo, na última estrofe. Todos cabendo na métrica da melodia da música. De volta o item central que define a imagem do morador de rua: o jornal. O jornal, assim como é usado como cama, também é usado como cobertor.
Podendo abalar o mundo
No embalo do nosso amor
Este verso é a imagem da inconsequência em se entregar ao prazer na rua e a céu aberto, assim, abalando o mundo. Afinal, estariam eles preocupados com outra coisa enquanto estão embalados em jornais, amores, tesão e inocências?
No ardor de tantos abraços
Caíram palácios, ruiu um império
Os nossos olhos vidrados de mistério
Em meio às paginas de jornais contendo notícias ruins sobre palácios, governos, impérios e que pouco ou nada os sensibilizam, estão eles a se abraçarem intensamente e com seus olhos vidrados de mistério. De fato a impressão que temos enquanto estamos de fora dessa situação de rua é que eles estão sempre com o olhar misterioso, longe e enigmático. Este último verso fecha com precisão o que a letra da música oferece a quem ouve ou lê: um grande mistério.
Essa canção toma a minha imaginação todas as vezes que a ouço, desde a primeira vez que a ouvi. Espero ter feito fluir novas ideias e imaginação para você leitor que também aprecia a boa música brasileira.
Chico Buarque é um compositor híbrido, cujas canções atravessam as barreiras sociais, sexuais e até mesmo de gênero. Ele é capaz de cantar letras que contam sobre mulheres descontentes com o casamento, vivendo em relacionamentos abusivos, se colocando em primeira pessoa como se a história fosse vivida por ele mesmo, como na canção Com Açúcar, Com Afeto.
Te convido a ouvir a canção interpretada por Maria Bethânia: